quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A pequena menina da janela de chuva


Enquanto eu estava crescendo a gente morava em uma casinha que olhava para um bloco com janelas grandes. Uma vez estava chovendo forte, bem forte, e mamãe precisou fechar o portão da garagem e eu saí para ajudar. Foi aí que eu vi a primeira vez a menininha com um cabelo grande e engraçado, encostada em uma daquelas janelonas do bloco. Vi claramente que tinham alguns pingos de chuva no rosto, caindo e caindo dos olhos dela; mas ela tinha a mão dela levantada e toda molhada pelos grandes pingos de chuva - assim ela ficou até que a chuva parasse, sorria suavemente mesmo com todos os pingos de chuva em seu rosto.
Com o tempo, aquela garotinha virou meu vício. Eu a assistia  através da janela diariamente. Ela sempre aparecia, sempre tarde da noite, quando minha mãe e meu pai já estavam dormindo, sempre com suas sobrancelhas erguidas e os olhos de chuva. Algumas vezes quando o céu estava limpo, ela olhava para cima e fala com as estrelas, muitas vezes tossindo e engasgando-se - como se precisasse da chuva naqueles dias frios, como se ela estivesse pedindo àquele lá de cima para fazer com que as nuvens viessem e chorassem junto com seus próprios pingos de chuva. 


Nós nos mudamos algum tempo depois que a vi a primeira vez e, vagarosamente, comecei a esquecê-la...Um dia quente e áspero de verão despedia-se do sol quando voltei lá, muitos anos depois, para vender a velha casa. Um suspiro chacoalhou-me o coração enquanto fechava os portões daquela antiga garagem; pensei nela, pensei no prédio que se erguia alto e escuro atrás de mim e, como em sonho, desejei vê-la. Devagar abri os olhos, encarando a mesma janela, vagarosa e esperançosamente; o céu arroxeado era convidativo e eu me sentei na calçada. A luz do poste ralhou e acendeu, os grilos envaideciam-se e criqueteavam e a brisa leve da noite balançou os fios do cabelo amassado, fechei os olhos. 
Logo a vi, os mesmos cabelos espalhados por todos os lados, a mesma sobrancelha frisada e a mesma boca entreaberta - como se fosse difícil de respirar -. Eu a vi conversar com deus, com um grito animalesco e mudo, sufocou o choro; ela rezou, ela implorou... Mas naquela noite a chuva nunca veio. Eu senti a sua dor, levantei-me como para acariciá-la. Cada pingo de chuva que caía dos seus olhos, brilhava a luz amarelada do poste. Ela estava chovendo.
Senti vontade de abraçá-la, cuidar dela, mas quando eu me movi ela parou e, como uma estátua, ficou encarando um ponto único no além mar de folhas escuras, enquanto a sua chuva continuava a cair através da janela. Ela levantou sua mão, esperando para ser molhada pelas lágrimas do céu - naquele dia ela não tinha nenhum tipo de sorriso em seu rosto dourado. Mas ela ficou lá. Eu fiquei lá.


Essa foi a última vez que a vi.






Respeitem os sinais de pontuação ao ler.
Respeitem a cronologia da história ao interpretar.
Pra ouvir junto: Saudade - Marcelo Camelo

Fotografia por Cynthia Lou - o que ela ta segurando é um capturador de sonhos ruins.
Bem aventurados os que postam seus contos :)